segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Cartas secretas da campanha presidencial – I

Lisboa, 17 de Outubro de 2005
Ex.mo Sr. Primeiro-Ministro,
Sei que se encontra muito ocupado de momento, com a discussão do Orçamento do Estado, mas não recorreria à sua pessoa se não estivesse extremamente necessitada.
O Manuel, depois da derrota do dia 9, já não é mais o mesmo. Deixou de ir a eventos culturais e passa horas fechado no gabinete da biblioteca a ler o "Abrupto" na internet. Não mais me apontou falhas na minha cultura literária ou se dignou corrigir a sintaxe das minhas frases, palavras ora deitadas ao ar sem destinatário atento. Faz constantemente chorar o nosso pequeno Dinis porque, apesar dos insistentes pedidos do petiz, recusa-se terminamente a dar-lhe as boas noites com a narração de textos de Sartre, como fazia em noites já idas.
Chamei o psiquiatra de família cá a casa e, após o pagamento dos habituais 150 euros de consulta domiciliária, o doutor disse-me que o Manuel sofria de choque pós-traumático eleitoral, também conhecido por "Olissimpo derrotatis doloris" (isto do latim sempre me entusiasmou, devo confessar). Mais me referiu que a única cura possível seria o reviver de uma situação igual ou semelhante àquela que conduziu ao choque.
Ora, só existirão eleições autárquicas daqui a quatro anos, tempo o suficiente para o Dinis poder seguir, sem orientação devida do seu querido papá, uma via filosófica que claramente o prejudique na sua evolução (espero, sinceramente, que ele nunca se meta no neo-kantianismo, é o pior que pode acontecer a um filho de qualquer pessoa).
Assim, pensei, com as presidenciais assim tão perto, abordar V.Ex.ª através desta missiva no sentido de ponderar a hipótese do Partido Socialista apoiar uma segunda candidatura à presidência na pessoa do Manuel.
É certo que poderia levantar alguma celeuma entre os demais camaradas socialistas, mas tenho a certeza que se lhes explicasse que a candidatura do Manuel é necessária por razões médicas e que é a única via para a salvaguarda da vitória do Partido Socialista nas presidenciais no caso de um eventual óbito do primeiro candidato apoiado pelo partido durante a campanha, o que seria natural dada a sua provecta idade, todos iriam entender que a candidatura do Manuel mais não seria do que mais um sacrifício em prol do partido.
Além de que recuperaria o Manuel para as lides políticas e para a vida familiar normal, locais de onde ele andou desaparecido na última semana.
Esperando ansiosamente por um sinal da parte de V.Ex.ª,
Despeço-me cordialmente,
B. Guimarães

Sem comentários: