sexta-feira, 16 de setembro de 2005

Alves o feminista
Não me sentia assim desde os idos de 90 do século passado, quando na minha tenra idade sentia a miúda ansiedade do primeiro dia de aulas. Hoje, aqui onde me tenho, frente ao computador, prende-me estado semelhante: a moinha na boca do estômago, garganta seca, mãos trémulas e um tanto ou quanto sudadas. A razão que assim me têm hoje é, tal como nos meus púberes anos lectivos, a premência de me afirmar, de não deixar escapar aquele momento exacto que, para o resto do ano, ou abria a porta da promissora admiração dos colegas ou, pelo contrário, sugava para a chacota diária. No meu caso, como anátema, esperava-me irremediavelmente um ano de tormento.
Por isso o peso desta responsabilidade. Para mim “Aldeia Lusitana” é o recreio do liceu no primeiro dia, a oportunidade de expurgar todos os encontrões, alcunhas, de chegar e esboçar qualquer coisa de interessante, evitando que as primeiras linhas não se abatam sobre mim como uma laje, vendo-me sobre sete palmos de terra antes mesmo de nascer.
Há contudo, tal como outrora, o bloqueio do início, qualquer coisa como procurar minhocas debaixo da pedra. Depois de 20 minutos a levantar neurónios em busca da inspiração, aquilo que encontro sob as pedras da minha memória sorrindo para mim é o Sr. Alves da mercearia e as páginas da “Crónica Feminina”. Os dois juntos; o que me obriga ao esforço adicional de os encaixar neste apontamento. Passo a explicar.
Comecemos pela revista “Crónica Feminina” (CF), já desaparecida, a única publicação a que durante mais de 30 anos, no charco do Portugalzito do antigo regime, as mulheres tinham direito. A “Crónica Feminina” dobrou o cabo da Revolução, sem emborcar, modernizou-se, ganhou alguma cor, mantendo o pequeno formato, as páginas dedicadas aos bordados e às fotos do “Bebé do Ano”. Contudo, com os cravos – calharia melhor as rosas - a CF ganhou, também, alguns espinhos cravando-os em velhos hábitos, ajudando a emancipar, esclarecendo e abrindo às mulheres um mundo novo. A mulher já não era, então, apenas predicado associado ao lar, mas também ao mundo laboral, à participação social.
A CF foi, também, para mim, numa idade em que apenas chegava com o queixo ao balcão da mercearia, o primeiro contacto com o fascínio do feminino. Neste ponto entra, então, o Sr. Alves. Perdoe-me a figura por o vir, agora, tirar do seu descanso no além, subtraindo-o à sua mercearia de bairro e o intrometer nesta teia do virtual. O Sr. Alves era uma figura esguia, seca, de tez hirta, modos plácidos e certeiros. No Sr. Alves não havia um gesto desnecessário e na mercearia que geria, sozinho, tudo era organização e, até mesmo os cheiros se arrumavam. Num canto era o aroma fresco a hortelã, num outro, o aroma seco do grão e do feijão, noutro ainda o alumínio das antigas latas de café, com o odor a grão moído a insinuar-se timidamente. A mercearia do Sr. Alves foi, para mim, o primeiro destino para incursões solitárias fora de casa; a fonte do primeiro aforro, com os trocos encaixados num mealheiro e, como disse, o primeiro contacto com o “eterno feminino” - esta expressão irrita-me.
Sem o saber o Sr. Alves formava e informava em muitos lares. Sobre o balcão lá estavam, sempre, dois ou três exemplares da CF desfolhados; sim porque o Sr. Alves, longe das modernices do packaging, como hoje pomposamente se chama ao “empacotar”, arrancava com gesto certeiro uma folha à CF, formava-lhe um cone e ali despejava o feijão, o grão, as lentilhas. Assim fazia o Sr. Alves o pacote, assim o desfazia eu, em casa, lendo as últimas do mundo das mulheres e vendo que também eram lidas pela minha mãe, pelo meu pai e, pela septuagenária avó – neste caso uma leitura de soslaio. Assim era na casa onde eu vivia e, por certo, na casa em baixo, ao lado e acima porque no bairro dos setenta do século XX, a mercearia do Sr. Alves era uma instituição e ponto de encontro incontornável. Nunca soube se o Sr. Alves lia a CF, mas sei que era, sem dúvida, um dos seus melhores divulgadores.
Perdoem-me os meus caros parceiros bloguistas da “aldeia lusitana”, estas reminiscências de infância. Perdoem-me todos os que tropeçando neste cantinho à beira rede alojado deram com isto. Como já perceberam pouco tenho para dizer o que, neste caso, nem me deixa muito mal pois, parece-me condição primeira para escrevinhar num blog,
Depois destas linhas sinto-me como no primeiro dia de escola: chegar a casa, descontar ao calendário um dia com a certeza de um longo e penoso ano pela frente.

1 comentário:

ENGº. Viriato disse...

Ora muito bem vindo caro Alves. Alguma coisa me diz que este vai ser um ano lectivo cheio de tropelias e grande divertimento para a malta da aldeia.
Já apaguei um comentário comercial porque no nosso blog só os Lusitanos é que deitam lixo. Um abraço e continua o bom trabalho