terça-feira, 30 de outubro de 2007

A calçar a luva branca para ir limpando as fossas enquanto respondo


Uma vez mais, não posso ficar indiferente ao recente desafio da vizinha rabodesaia.
Infelizmente, o livro que estava mais perto era a biografia de Winston Churchill, pela sua neta Celia Sandys, mas essa obra não possui 161 páginas.
Para evitar que o desafio ficasse tão em branco como as luvas, decidi levantar o rabinho da cadeira e ir até ao armário mais próximo onde está uma obra que já li faz algum tempo e que, curiosamente, fiquei a saber (mercê de outro desafio da vizinhança), é uma das preferidas do Exmo. Senhor Marquês.
Aqui fica um trecho da página 161:
"Philip apreciou o ar pitoresco e atrevido dos americanos, achando que isso revelava um espírito romântico. Miss Price perguntou-lhe as horas.
- Preciso de ir para o estúdio - disse ela. - Vai às aulas de desenho?
Philip nunca ouvira falar em tal coisa. Miss Price explicou, então, que um modelo posava diariamente, das cinco às seis, para todos que o quisessem desenhar, mediante a remuneração de cinquenta cêntimos. Era excelente para praticar, pois cada dia posava um modelo diferente.
- Não me parece que esteja em condições de fazer isso. Terá de esperar um pouco.
- Não vejo razão que me impeça de experimentar. Não tenho mais nada que fazer.
Levantaram-se e puseram-se a caminho do estúdio. Philip ignorava se Miss Price preferia andar só ou na sua companhia. Permanecia junto dela por puro embaraço, pois não sabia como deixá-la. Ela não falava, limitando-se a responder-lhe às perguntas de maneira pouco polida.
Um homem, à porta do estúdio, com um grande prato na mão, recebia o meio franco de cada pessoa que entrava. A frequência era muito maior do que de manhã, não havendo aquela preponderância de ingleses e americanos nem mulheres em tão grande proporção. Philip achou que essa reunião correspondia mais à sua expectativa. Fazia bastante calor e o ar em pouco tempo se tornou irrespirável. Quem posava, dessa vez, era um velho de longas barbas brancas. Philip tentou pôr em prática os escassos conhecimentos adquiridos pela manhã, mas em vão; concluiu, por fim, não saber desenhar tão bem como imaginava. Olhava invejosamente para os esboços dos vizinhos e punha-se a imaginar quando seria capaz de manejar o carvão com aquela maestria. A hora passou-se rapidamente. Não querendo importunar Miss Price, sentara-se a certa distância, mas, no final, quando passou perto dela para se ir embora, a jovem perguntou-lhe, em tom brusco, como se saíra.
- Não muito bem - respondeu com um sorriso.
- Se tivesse condescendido em sentar-se a meu lado, ter-lhe-ia dado alguns conselhos. Sem dúvida, considera-se uma sumidade.
- Não, não foi isso. É que temia importuná-la.
- Quando for assim, dir-lho-ei sem rodeios.
Philip pressentia, através das suas maneiras intratáveis, que ela lhe oferecia auxílio."


in Servidão Humana - W. Somerset Maugham (Colecção Mil Folhas, n.º 70, Público).

Hic Hic Hurra

4 comentários:

Anónimo disse...

Caro Zé,
5.ª frase completa não é a mesma coisa que 5.º episódio completo!
Bela escolha.
Não tinhas por aí um manual de enólogos?
Marquês

Inspector Serôdio, José Serôdio disse...

Ora aí está um belíssimo autor - dos melhores prosadores estrangeiros que conheço -
gostei particularmente do «The Razor's Edge»

(fica mais pomposo colocar o título no original!)

Anónimo disse...

bahhh que seca...

Bottled (em português, Botelho) disse...

Caros colegas de blog (com excepção para o Chefe... a propósito, alguém sabe por onde ele anda?),

Não foi uma escolha propositada, mas sim o livro que estava à mão de semear.

Não tenho manuais de enólogos, porque eu gosto muito mais da prática do que da teoria...

Quanto ao Somerset, devo confessar que também gosto da sua obra literária e que o Servidão Humana sempre foi tido como uma autobiografia, já que existe um evidente paralelismo entre o personagem principal, Philip Carey e o próprio autor. As razões encontram-se facilmente explicadas na internet, para quem tenha este tipo de curiosidade...

E ainda não li o Fio da Navalha, embora já me tenham garantido que se trata de uma grande obra. Fica para segundas núpcias, pois tenho outras prioridades ao nível da literatura.

Caro vermouth,

Não podemos gostar todos da mesma coisa. O mundo seria muito chato se todos fossemos iguais. Para mim, este tipo de leitura não constitui uma seca, antes pelo contrário. Mas compreendo que assim não o ache. Deixe lá, o mais importante é ter os seus próprios gostos bem definidos e actuar de acordo com eles. Obrigado pelo comentário.

Hic Hic Hurra