quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

O Annus Horribilis do Pai Natal

Este ano as coisas não tinham corrido nada bem. Mesmo nada bem.
Sentado no estábulo, semi-nu da cintura para baixo, o Pai Natal reflectia.
Primeiro tinham sido as negociações com os sindicatos dos duendes, que queriam melhorias salariais superiores a 345%, afirmando que nos últimos 127 anos os duendes não haviam sido aumentados e que, portanto, os novos aumentos anuais teriam de reflectir os aumentos não verificados em anos anteriores, bem como os actuais níveis de inflação.
Tinha-lhes respondido que, ou aceitavam a coisa conforme estava, ou então mudaria a sede de fabrico de brinquedos e início de viagem para a China, onde a mão-de-obra e os materiais eram bastante mais baratos. Aliás, cerca de 15% dos brinquedos que iriam ser transportados este ano já tinham sido comprados em lojas chinesas na Lapónia, dado que o ritmo dos duendes não tinha conseguido acompanhar o crescimento demográfico mundial e a maior exigência de prendas.
Aliado a tal argumento, também ajudou o facto do Ministro da Economia da Lapónia, um tal Manuel Lapinho, se meter na discussão e dizer aos duendes que a actividade deles continuaria sem aumentos anuais, caso contrário a indústria mais rentável do sítio, o turismo de Natal para ver as instalações, encerraria, e com isso o País ver-se-ia obrigado a aderir ao Fundo de Ajuda Humanitária do Bob Geldof. Onde não havia emprego para duendes.
Depois, vieram o raio das renas. Ele bem sabia que a instalação de TV Cabo nas suas instalações ir-lhe-ia, mais cedo ou mais tarde, causar problemas. Nunca pensara que fossem deste tipo.
As sacanas das renas tinham-lhe apresentado um pré-aviso de greve. Marcada para a noite de véspera de Natal. Existiam outras 364 noites durante o ano. E tinham escolhido logo aquela. Alegavam cerca de 250 anos de salários em atraso.
Falara-lhes das dificuldades financeiras da fábrica, da impossibilidade de conseguir receitas (as pessoas tinham-se habituado a receberem as prendas do Pai Natal sem nada darem em troca) e apelara-lhes à lágrima pela tristeza das crianças ao aperceberem-se da falta de prendas.
Nada feito. Estavam fartas de comer erva de terceira categoria na Lapónia e queriam algo melhor à mesa. Bem como melhores instalações e condições de trabalho. Estavam fartas de serem confundidas com mísseis SCUD e automaticamente alvo de bombardeio quando sobrevoavam Israel.
Não tivera outro remédio. Tivera de procurar patrocinadores. Alguém havia-lhe sugerido esta sociedade, que parecia ter dinheiro para jogar à rua, em causa nobres, desde que com as devidas contrapartidas. Viu-se frente a frente com os representantes da Bentandwin.com, no gabinete do Manuel Lapinho.
Fora uma longa discussão. Eles tinham sido bastante generosos no valor das ofertas anuais, mas as contrapartidas...as contrapartidas...
Primeiro, quiseram 90% das receitas televisivas anuais que fossem obtidas. Quais receitas televisivas, perguntara. Responderam-lhe que a viagem do Pai Natal deveria ser transmitida para todo o Mundo, que era algo que, na Aldeia Global que hoje existe, seria perfeitamente normal, e que todos os canais do Mundo iriam pagar uma fortuna para terem o exclusivo. Por ele tudo bem, respondera, desde que não metessem câmaras no seu chapéu.
Em segundo lugar, quiseram que ele permitisse o desenvolvimento de apostas relacionadas com a noite de Natal e com a utilização do seu nome: quantas horas iria demorar em cada país, quantas prendas aí entregaria, quais os países que não sobrevoaria, etc.. Isto parecera-lhe confuso, mas não pareceu ver nada de mal, por aí.
O problema fora a terceira cláusula. E era aí que a negociação se tinha prolongado. Os sujeitos queriam que ele passasse a usar o fato com as cores amarela e preta. Da cor do símbolo da sociedade patrocinaste. Retorquira-lhes que não era o Avô Metralha para usar aquelas cores, e que a cor vermelha do Natal já estava demasiado enraizada no espírito da sociedade para de repente o Pai Natal deixar de a usar.
Os sujeitos disseram-lhe que era pegar ou largar.
Pensou, hesitou e apresentou-lhes a proposta das renas usarem trajes amarelos e pretos.
Não, disseram-lhe, tinha de ser ele.
Mas, retorquiu, se usasse um fato amarelo à noite quando sobrevoasse o Médio Oriente, mais valia fazer já o seu testamento. Os sujeitos olharam uns para os outros e de repente desataram a dizer uns para os outros, com enorme entusiasmo, demasiado para o seu gosto, “ena pá, que excelente monte de apostas que podemos fazer a partir desta hipótese do amarelo! Em que país o Pai Natal vai morrer? O Pai Natal vai morrer este ano? Quantos minutos o Pai Natal aguenta vivo se sobrevoar a Faixa de Gaza?”.
Não aguentando mais, levantou-se. Preparava-se para sair quando um dos sujeitos, aquele que havia permanecido ao canto bastante calado durante tudo isto, chamou o seu nome e disse-lhe “Esqueça a terceira cláusula. O patrocínio é seu”. Isto perante o olhar temeroso dos demais.
Agradecera e saíra. Mais aliviado.
Animadas pelo aviso do patrocínio recebido (mas curiosamente ainda não pago até à data), as renas decidiram ceder e participar na entrega deste ano. Menos-mal.
A coisa continuou quando os sujeitos da televisão decidiram instalar as câmaras de filmar nas hastes das renas, para a tal transmissão mundial da viagem. Após as experiências efectuadas, aperceberam-se de que as hastes em si interferiam com a transmissão de imagens. Instalaram então as câmaras nas partes laterais do trenó.
Normalmente, até gostava de ir beber um chocolate quente ao Alasca antes de começar a distribuição pelos atóis do Pacifico, os primeiros do fuso horário a apanhar com a noite natalícia. Este ano não pôde. Teve de comparecer a uma entrevista de divulgação da viagem por exigências publicitárias do contrato de patrocínio celebrado.
Fazendo um esforço mental para não chamar nomes aos envolvidos no negócio (incluindo o próprio), iniciou a viagem com 10 minutos de atraso, devido às perguntas ignorantes e longas da dita entrevistadora, mais relacionadas com insistência na sua vida sentimental. Qual vida sentimental, por São Nicolau?! Não se encontravam facilmente mulheres naquele sítio! E além do mais já se tinha habituado à companhia das renas, pese agora estas quisessem serem pagas pelos seus serviços.
A viagem correra bem, até entrar no Médio Oriente. Raios partam os americanos, a culpa era toda deles. Antes dos americanos se terem lembrado de invadir o Afeganistão e o Iraque, o Médio Oriente fazia-se num ápice. Existiam poucas pessoas que conheciam o Pai Natal (normalmente o pessoal das embaixadas), apesar de muitas mais celebrarem o Natal, mas tão-somente como a comemoração do nascimento de Jesus, desconhecendo a figura do velhinho barbudo vestido à Liverpool FC.
Depois das invasões, tudo se modificara. Os militares, provenientes dos países ocidentais, acreditavam no Pai Natal e estavam nas principais zonas de perigo de bombardeio. E lá tinha de ir o Pai Natal.
No ano anterior vira pelo menos dois mísseis rasarem a traseira do trenó e fizera uso de umas bombinhas de fogo de artifício para os despistar.
Este ano a coisa fora pior. Dois F-16 norte-americanos, confundindo-o sabe-se lá com o quê, perseguiram-no a uma velocidade estonteante, só tendo conseguido despistá-los quando baixou fora do nível de alcance do radar. O problema fora o embate do trenó num edifício semi-bombardeado. As renas e o trenó prosseguiram, mas ele havia caído.
Viu aproximar-se um, dois iraquianos, a olharem-no esbugalhados. Até que um deles abriu a boca e disse-lhe “eu sei quem tu és, és o nosso grande irmão, o nosso salvador, Osama Bin Laden! Essa barba é inconfundível! Alá esteja contigo!”. Já se preparava para lhes dar o Osama quando as renas passaram rente ao local e conseguiu entrar. A última coisa que ouviu dos iraquianos foi “o nosso grande irmão Osama conseguiu mais um avião para rebentar com os alicerces dos edifícios dos hereges americanos! E olha, o avião tem camelos cornudos que voam!”.
Em Israel deparou-se com o problema do costume: a confusão com mísseis SCUD, facilmente desviáveis com bombinhas de núcleo quente atirados noutra direcção.
A coisa correu razoavelmente a partir daí. Até que chegou a Portugal. Tinha sempre imensos problemas em Portugal. Os gajos eram complicados. Para já, as chaminés algarvias. Para passar por elas um sujeito tinha não só de usar a magia como de se contorcer todo. Depois, os meios urbanos estavam agora completamente equipados com exaustores. No início, a coisa revelara-se difícil, mas com o tempo aprendera que bastava uma simples magia de afastamento do painel para se conseguir passar.
Mas não fora isso que causara o sarilho. Fora uma casa nova equipada com a chamada “cozinha inteligente”. Quando passara o exaustor, imediatamente o sistema deu sinal de violação do sistema e tapou todos os cantos à casa. Incluindo o exaustor. Nem com a magia aquilo se mexia. Depois, e rapidamente, vira a luz do corredor acender-se, seguida da cozinha, e ouvira uma voz de criança exclamar “Mãe, pai, o Manuel Alegre está na nossa cozinha!”. A partir daí só se lembrou de correr na direcção da janela e atirar-se contra a mesma, partindo-a. Como era um 14.º andar, assobiou para as renas, dando-lhes tempo de o apanhar quando ia em queda perto do 5.º andar.
Um vidro partido. Não gostava de partir coisas na sua função. Normalmente, o patrão (sim, porque havia um patrão) não gostava destas coisas. Coisas que dessem origem a processos judiciais e essas coisas não eram com ele. Sabia que o patrão já tinha conhecimento do facto (quanto mais não fosse através da transmissão televisiva). Rezava agora para não lhe meter em cima um processo disciplinar por mau cumprimento da função e substitui-lo por aquele boneco da Seven-Up, o Fido ou como lá ele se chamava. E que dores eram aquelas no seu traseiro?
Cabisbaixo, prosseguiu a sua viagem, completando-a.
De regresso à Lapónia, acomodou as renas e tirou as calças e as “boxers”. O seu traseiro estava cheio de vidros. Da janela partida. Tinham entrado no espaço existente entre a pele e as suas calças, espetando-se no seu traseiro e causando feridas.
“Um annus horribilis, sem dúvida”, pensou. Olhou para as câmaras de filmar do trenó, viradas na sua direcção. Será que ainda estariam a filmar?...”

1 comentário:

My Daily Struggles disse...

Já agora, espero e desejo que 2006 seja um excelente ano para vós!