sexta-feira, 23 de setembro de 2005

Portugal Sem Memória

Um estudo recentemente publicado num semanário da nossa praça sobre as assimetrias nacionais; veio confirmar aquilo que há muito se sabe: Portugal vive em dois tempos díspares: um, o do país litoral, abençoado pela revigorante e efervescente maresia do desenvolvimento – se bem que muitas vezes apenas aparente - ; o outro, o país deprimido, interior, bafejado por sopros de indiferença.
A nota fez-me pensar em duas ou três coisas, confesso que um tanto desconexas. De qualquer forma arrisco-me a materializa-las nestas linhas.
No nosso país falar do “rural” tornou-se sinónimo de falar de atraso, de desencanto, de desertificação, de inviável. Contudo, neste país que virou as costas ao mundo rural há uma porta aberta para o Portugal perdido, enterrado na memória colectiva, uma porta que se abre com dois uns. Onde encontramos, então, essa porta? Mesmo à mão, no comando da televisão, a caixinha mágica que gera o impulso capaz de nos transportar ao Portugal rural vivo, humano, rico, colorido, repleto de tradição. Perece incrível, mas é a pura verdade. No Portugal da televisão decrépita do início do século XXI, ainda há um canal que nos apresenta o país que rejeitamos e que votámos ao desprezo. Para tal temos, no entanto, que viajar ao mofo do baú televisivo.
Falo da “RTP Memória” e compensa nas nossas andanças diárias pelo éter televisivo determo-nos alguns minutos na dita, resistindo à tentação de premir ascendente, descendente, ou aleatoriamente, o botãozinho de mudança de canal. Compreendo que no oceano das solicitações do audiovisual moderno seja tarefa difícil, mas a recompensa para esta gota de sacrifício é grande. A “RTP Memória” é uma espécie de caixinha perdida no tempo, uma viagem ao Portugal que se encontra guardado nos arquivos da televisão estatal.
Vou esmiuçar: a “RTP Memória” pode ser considerada a ovelha negra dos canais televisivos nacionais, funcionando em contra-ciclo aos demais. Não tem, nem de perto, comparação com a “Sic Gold” que só reforça o atraso televisivo nacional, com a reposição do lixo televisivo com o qual a estação de Carnaxide entope o meio audiovisual há 10 anos. A “RTP Memória” baseia a sua programação numa óbvia vantagem, baseada num dos mais ricos acervos de imagens a nível das televisões europeias. Desta forma, o canal temático da RTP é uma espécie de paradigma de “HG Wells” e da sua máquina do tempo, permitindo um saltinho até ao Portugal que, aparentemente, desapareceu, sublinho “aparentemente”, porque hoje em dia desaparecer dos canais de televisão significa desaparecer dos nossos sentidos, mesmo que, algures, continue pulsante e vivo.
A “RTP Memoria” será, ainda, para muitos – para os desmemorados, para aqueles que o fingem ser ou para os que pura e simplesmente nunca tiveram atributo neuronal - qualquer coisa que se aproxima de uma “Caixa de Pandora” arriscando, para uns soltar recordações, para outros motivo de espanto porque desconhecendo. Uns e outros perceberão um Portugal rural humanizado, vivo, rico, colorido, tradicional.
A “RTP Memória” arrisca-se, assim, a tornar programas tão inofensivos e velhinhos como o “TV Rural” – com o não menos inofensivo Eng. Sousa Veloso - ou “Coisas do Tempo” em poderosas armas de reabilitação da memória, recuperando-a da letargia da programação moderna e recuperando-nos para um imaginário rural que se dissolveu no meio urbano.
Os programas citados exigiam algum esforço e uma atitude contra passividade. Obrigavam-nos a isso porque também eles se faziam com esforço, honestidade e entrega, com poucos recursos técnicos, mas com muitos recursos intelectuais. Os homens – e mulheres, percebiam da matéria e faziam-nos gostar dela, mesmo tratando-se dos problemas da cultura da maçã starting, ou na explicação do cancioneiro transmontano. Portugal reconhecia-se no seu interior, não se envergonhava com a sua cultura tradicional, estimava o campo, estimava as florestas, estimava as suas povoações e as populações.
Não se trata aqui de querer impor o antigo como superlativo do bom, nem de afirmar a televisão como o único meio – porque não pode ser - responsável por termos perdido o Portugal interior. A “RTP Memória” transmite o bom, o menos bom e o mau e, reconheço, que os formatos de televisão evoluem. No entanto, independentemente desta ou daquela forma de se fazer televisão, das justificadas alterações na sociedade, mais plural e diversificada, há no nosso país um património que só com muito esforço tenta subsistir. Esse património é, nem mais nem menos, a nossa identidade cultural, que ao que parece se vê mastigada pelo nosso esquecimento.
Só espero que daqui por 20 ou 30 anos não se lembrem de criar um canal temático sério, género televisão memória, com base na matéria televisiva presente, pois considerando o actual panorama, o melhor que se poderá apresentar é qualquer coisa muito parecida com a “SIC Comédia”.

1 comentário:

ENGº. Viriato disse...

Preocupante, meu caro Alves, deveras preocupante. O facto de o teres colocado dessa maneira cristalina torna-o tão óbvio para todos que levanta a questão aqui na aldeia: que contributo vamos dar para impedir tal fim?