sexta-feira, 30 de setembro de 2005

Cumpra-se o mar


Parto de um lugar comum: tratamos bem e acarinhamos aquilo que amamos ou, não querendo levar tão longe as emoções, diria que, ao menos é natural que estimemos aquilo de que gostamos. Isto para concluir (e começo este apontamento com uma conclusão, para depois chegar aos fundamentos) que os portugueses, pela forma como o cuidam, não amam, não estimam, não acarinham, nem tão-somente apreciam o seu país.
Bastava-me ficar por aqui para que alguns percebam o alcance do termo e, para mim, estaria, por certo, a poupar-me ao desgaste emocional que é, rememorar parte do que vai mal. Todavia, como em Portugal há mais cegos do que bengalas, deixem-me ser para esses, os que deambulam num labirinto sensitivo, uma espécie de cão pastor. Não que tenha recebido treino especial para o efeito, até porque para farejar o que vai mal basta seguir um pressuposto fundamental para a vida em comunidade: algum sentido cívico e espírito de grupo; mínimo denominador comum que é alheio a uma substancial fatia dos portugueses. Tratamos mal o meio natural, tratamos mal o meio urbano e é neste que me quero, de momento, concentrar.
A generalidade dos espaços públicos das cidades portuguesas é a imagem espelhada do civismo e sentido de comunidade dos portugueses, algo que socorrendo-me à simbólica matemática, se exprime com um “0”. O nível de um povo lê-se tanto nos indicadores de desenvolvimento, como o que a leitura da envolvente e do meio nos revela sobre o que esse mesmo povo proporciona a si e aos seus. Pela forma como o espaço público urbano está tratado em Portugal só posso concluir que alimentamos um ódio visceral pelo nosso país, pelo meio que nos rodeia, pelos nossos filhos e pelos que, antes, nos legaram o espaço físico que temos. Dentro de casa o português é um esmero, um enlevo de arrumo e limpeza. Vejam-se os jardins relvados dos quintais primorosamente cuidados, as rendinhas à janela, o soalhinho sempre limpo e perfumado. Isso dentro da casa, fazendo jus à velha “casinha portuguesa”, concerteza.
Fora de casa, nas ruas, nas praças, nas avenidas, o português vinga-se, assume o seu alter-ego, destrói, corrói, suja, corrompe, danifica, tudo isto impunemente, com o beneplácito que autoriza a bandalhice que graça no nosso país e que se sintetiza numa palavra: complacência. Somos complacentes para com os que baixam a janela do carro, atirando o caroço de maçã para a via pública; somos complacentes com os dejectos dos cãezinhos nos passeios e nos relvados, somos complacentes com os carros estacionados em largos pedonais, somos complacentes com as fachadas conspurcadas com os grafiti, somos complacentes com os eco-pontos atulhados de lixo orgânico. Somos, de certa forma, complacentes porque no fundo pouco abdicamos do “eu” em prol do “nós”.
A degradação do espaço público resulta da própria essência do termo: é público. Os portugueses têm uma natural aversão à disponibilidade para cooperar. Somos tentados por uma inveja mesquinha, diria quase orgânica, pelo próximo. Temos que ser melhor, estar melhor, parecer melhor, intento que se alcança, com um espírito de competição muito apurado. E que melhor espaço para o fazer do que a nossa casa, marca da nossa identidade, da nossa existência, da nossa individualidade. Para o português o espaço público é um espaço incógnito, impessoal, alheio. Porquê: porque apela ao comunitário, à cooperação, ao respeito. O português não compreende estes termos, até porque cada vez menos usufrui do espaço público: vira as costas aos parques e jardins, e prefere os centros comerciais. O irónico é dizer que, ao menos ali, encontra um espaço limpo, cuidado, iluminado, não compreendendo que é a ignorância cívica e a indiferença que mata o tradicional espaço comunitário.
Não aprecio consideravelmente a escrita de Saramago, mas reconheço-lhe os recursos literários, o engenho, a pertinência e a originalidade na prosa e na temática. Vem-me recorrentemente à memória, quando me detenho nas questões que enunciei, uma das imagens de uma das obras do nosso Nobel, a “Jangada de Pedra”: a Península Ibérica larga a sua condição continental e lança-se numa viagem solitária. Gosto, perdoe-me o autor, de pincelar esta imagem com um certo pormenor: a de um Portugal libertando-se de todos os portugueses, partindo ferido e ofendido, magoado e triste, procurando, longe recompor-se de todas estas provações. Aos portugueses, o país em partida faz cumprir a vocação nacional: entrega-nos ao mar: Suponho que na aflição de um afogamento colectivo aprendamos a cooperar.

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