segunda-feira, 19 de setembro de 2005

As Tabernas


O post da companhia do Alves sobre as mercearias de bairro, mais do que me fazer recordar as fabulosas fotonovelas que vinham na "Crónica Feminina", trouxe-me à memória os mais famosos pontos de encontro existentes nos bairros nos anos 70: as tabernas.
Nos anos 70, os bairros não eram ocupados por 4, 5, 6 ou 7 cafés, como hoje, mas sim por 4, 5, 6 ou 7 tabernas.
Antepassados históricos dos actuais estabelecimentos de cafetaria, as tabernas representavam claramente a nossa sociedade no período temporal em apreço.
Constituíam o grande reduto do macho português. As únicas mulheres admitidas eram as mulheres do taberneiro, as quais, na maioria das situações, deixavam muito a desejar à beleza, parecendo muitas vezes mais homens que os próprios maridos. Inclusive no temperamento.
Homem que tivesse o azar de ter a sua mulher a ir buscá-lo à taberna mais valia não por lá os pés durante um período considerável, a não ser que a mulher aparecesse publicamente no dia seguinte exibindo algumas nódoas negras.
Não existiam homossexuais no local ou quem demonstrasse tal comportamento. A taberna não era lugar para homens que gostassem de bricolage, moda e decoração. Ali só havia malta que gostava de futebol, fados, Fátima, de jogar às cartas e de beber uns bons copos de vinho e umas minis. Todos os homens eram casados. As raras excepções frequentavam, com assiduidade e publicamente, as denominadas "casas de putas".
Quase nenhum cliente tinha carro. Um ou outro mais abastado tinha uma "Casal 77", uma "Zundapp" ou uma "SIS Sach". Saiam sempre da taberna com as motas aos ziguezagues. Mas também era um tempo em que quase não havia risco de acidente dado o baixo número de veículos automóveis existentes e o facto dos peões ouvirem o barulho das motas a aproximarem-se a quilómetros de distância dado o barulho semelhante ao de um avião que na altura aqueles veículos faziam.
Era também um ponto de encontro dos miúdos do bairro à hora do almoço. Todos nós éramos enviados pelos respectivos progenitores para irmos buscar um litro de vinho tinto ou branco para o almoço e jantar dos respectivos. Encontrávamo-nos normalmente nas fases em que uns iam e outros vinham, e aí combinavam-se a maior parte dos jogos de rua para mais tarde com os demais. Alguns de nós que avistavam os pais nas tabernas faziam o possível por convencê-los a pagarem-nos uma "Sumol". Era o tempo da colecção de caricas do Tintin e do Spirou que vinham nas garrafas da "Sumol" laranja e ananás. Do "Laranjina C" com a garrafa em forma de pêra e das gasosas adocicadas mas com pouco gás.
Era o tempo em que ao entrarmos numa taberna pensávamos que aquilo deveria ser como num barco rabelo: viam-se pipas por todo o lado. O cheiro era característico. Só existiam dois odores possíveis numa taberna: o cheiro a vinho branco ou o cheiro a vinho tinto.
Não existiam os consumos obrigatórios. Era um local de encontro com os amigos, em que o homem chegava, sentava-se e conversava com os presentes, todos conhecidos. Procediam-se a duradouros jogos de sueca sem qualquer tipo de apostas, alguns dos quais terminavam em sarrabulho, com copos e cabeças partidas, mas em que não existiam riscos da P.S.P. ali irromper para prender o pessoal por jogo ilegal. Os meios copos de vinho e as minis sucediam-se sem qualquer pressão e ao longo do tempo. Era também o tempo em que se podiam levar petiscos de casa para comer com os amigos, sem que o dono do estabelecimento fizesse cara feia pela despesa não feita. A despesa vinha sempre mais tarde para as bebidas de acompanhamento. Os domingos eram dias reis nas tabernas, dia da semana em que os homens se juntavam todos na taberna de tarde para ouvir os relatos futebolísticos da RDP, da Renascença ou da Comercial. Era o tempo em que não existia TSF e a Comercial ainda se dedicava a estas coisas.
Era também o tempo em que uma taberna que não conseguisse atrair os homens utilizava outro chamariz típico para a produção de lucros: quem não se lembra das mesas de matraquilhos com cheiro de madeira velha e com paredes e ferros grossos, em que os bonecos pesavam como chumbo.
Era também um tempo em que o sofrimento começava mais cedo para a maior parte das mulheres casadas. Uma taberna fechava às 8, máximo 9 horas da noite, altura em que o homem chegava completamente embriagado a casa e começava a distribuir pancada por tudo o que respirasse à sua frente. Com o desaparecimento das tabernas e o avanço das horas de encerramento dos cafés pela noite adentro, também os hábitos horários dos portugueses e sobretudo das portuguesas tiveram de se adaptar a essa circunstância. A evolução civilizacional permite algumas mudanças, mas, infelizmente, relativamente a algumas situações os comportamentos nunca mudam.
Os tempos mudaram. E as tabernas com eles. Avançaram para snack-bars. Depois para cafés /pastelarias. Outros já são restaurantes. Deixou de se ouvir os relatos ao domingo e passou-se a ver a bola na Sport TV. A sueca passou a ser jogada nos jardins. E o mais triste para mim é mesmo o facto de terem deixado de existir colecções de caricas.
Curiosamente, a culpa disto é da mulher e da sua emancipação. A taberna nunca foi um local destinado às mulheres. E, assim, a sociedade viu-se obrigada a criar um novo espaço para o convívio das mesmas e forçou os seus elementos a adaptar-se a esse novo estado. Os comerciantes viram o que tinham a ver. O macho português viu-se obrigado a viver em cativeiro para agradar à sociedade e deixou de ter o seu reduto próprio. O que talvez o tenha tornado mais violento. Mas isso já seria matéria para outro comentário.
Todavia, tendo em conta o que tenho visto ultimamente, ainda guardo uma réstia de esperança de que o Zézé Camarinha abra uma taberna em Portimão. E que convença a "Olá" a pôr cromos do Tintin e do Spirou nas tampas dos cornetos.

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