sexta-feira, 25 de maio de 2007

Quando a saudade se torna insuportavelmente dolorosa

Hoje não vão existir, da minha parte, fotos absurdas, com comentários malucos.
Hoje não haverão, aqui no blog, as secções People are strange e Maio - Mês do Coração.
A razão é tristemente conhecida: hoje é o Dia Internacional da Criança Desaparecida.
Por isso, por tudo o que tal representa, este é um momento que entendo ser de profunda reflexão para todos.
Começo por dizer que me choca que exista quem difunda notícias a dizer que hoje se comemora este dia.
Pela minha parte, não encontro qualquer motivo para comemorações.
Depois, limito-me a observar o óbvio: a dor lancinante, de levar à loucura, que qualquer pai ou mãe normais não sentirão quando se apercebem que o filho ou a filha não regressaram a casa, como seria habitual.
Imaginem, apenas, que aquela pessoa de quem vocês mais gostam, aquela que vos diz tudo, que amam incondicionalmente, desaparece.
Conseguem sentir, no vosso íntimo, um vislumbre dessa dor, dessa agonia?
Agora multipliquem esse sentimento por um número bem redondo, bem gordo e talvez assim se perceba o que devem sentir essas pessoas...
Pessoas essas que, não convém esquecê-lo, hoje são os outros.
Mas que, amanhã, poderemos ser nós.
Porque o mal, profundo, enraivecido, brutal, aparece do nada e não tem uma face vísivel, representando algo que sempre me arrepiou profundamente.
Já que o mal se enraíza onde menos se espera e se disfarça de maneiras e formas inimagináveis, transformando seres humanos aparentemente normais em autênticas bestas, em monstros capazes de cometer as maiores atrocidades, regressando posteriormente ao convívio social como se nada tivessem feito, como se nada nas suas vidas e nas daqueles que violentamente destruiram, sabe Deus a que preço, tivesse mudado.
Confesso que sou bastante fundamentalista no que toca à criança, a toda e qualquer criança. Como li uma vez, Deus estava a rir-se e profundamente bem disposto quando criou a criança.
Ser criança é ser puro, é ser alegre, é ter o dom da brincadeira constante, do sorriso fácil, da partida que se prega a gargalhar, do beicinho, da ternura, da pureza, do amor... em suma, da perfeição!
E tudo o que é perfeito é, por esse motivo, cobiçado e invejado.
Para mim, é estranhamente elucidativo que, a nível mundial, não existam números exactos capazes de ilustrar o desaparecimento de crianças.
Apenas se sabe que são milhares.
Apenas se sabe que todos os dias elas desaparecem.
Apenas se sabe que, neste preciso momento em que escrevo estas linhas, se calhar outra criança estará a ser levada sabe-se lá para onde e para que fins.
O que nos leva a outro ponto: os fins.
Se há aquelas que fogem de casa, por inúmeros motivos (e estou em crer, serão uma percentagem ínfima das crianças desaparecidas), outras há que são levadas, raptadas, separadas dos respectivos ambientes familiares, para engrossar outras famílias, para comércio de órgãos e para satisfação de prazeres sexuais de adultos.
Estamos em pleno século XXI e eu estou a escrever, nos tempos da civilização moderna, nos tempos em que as distâncias se encurtaram, nos tempos dos grandes avanços tecnológicos e científicos, a respeito de uma questão que nem deveria existir na mentalidade sócio-cultural da actualidade.
Porque é antinatural.
Porque é nojenta e repugnante.
Porque revela uma demência a toda a prova de quem, a troco de dinheiro fácil (de muito dinheiro fácil), se entrega a uma prática que é, a todos títulos, inqualificável.
Mas, como sempre se refere, desde que o sofrimento não seja nosso...
Urge tomar a consciência do que se passa.
O Estado não se pode demitir das suas responsabilidades, tal como nós, cidadãos comuns, não nos demitimos das nossas.
Mas o problema não é só estadual, tem de ser encarado à escala planetária, todo o planeta tem de estar envolvido na procura de soluções para este tipo de problemas, que não são de resposta fácil e exigem de todos os intervenientes um empenho que vai muito para além do que lhes seria normalmente exigível na resolução de outras questões.
Ainda ontem, por exemplo, assisti a uma reportagem sobre dois predadores sexuais que actuavam na zona de Lisboa (o Prior Velho é mesmo aqui ao lado, caso ainda não se tenham apercebido) e de Coimbra (é no nosso País, já se deram conta?), já para não falar do conhecido e mediático caso de Madeleine (o Allgarve, afinal, ainda não é espanhol).
Agora distribuam estes recentes casos, mais os outros que existiram em Portugal e não tiveram o mediatismo nem os meios envolvidos neste recente, pelo resto do Mundo e chegarão à conclusão que esta é uma realidade dos nossos dias, relativamente à qual não devemos fechar os olhos, voltar as costas e fingir que nada é connosco.
Custa-me, por exemplo, saber que existem pessoas referenciadas como pedófilos, como raptores ou capazes de cometer tamanhos actos e outros semelhantes, que andam por aí, completamente despercebidos, a "marcar" crianças, a conhecer os seus hábitos, a aliciá-las e, depois, a separá-las, nalguns casos para sempre, do seu conforto: a sua família.
Para terminar, gostaria ainda de referir um último ponto: a criança.
Deixei-a para o fim propositadamente.
Ela é a grande vítima de uma situação para a qual em nada contribuíu, de uma situação onde se procuram bodes expiatórios nos familiares, nos amigos, nos vizinhos, nas autoridades, em suma, naqueles que deveriam ter tornado a mão invísivel um pouco mais visível num determinado dia e não o fizeram (como o poderiam ter feito, se não temos ainda o dom de adivinhar o futuro?), quando o verdadeiro culpado é anónimo, chega pela calada e, numa questão de segundos, transforma pessoas normais em verdadeiros cadáveres ambulantes, em seres estranhos consumidos por culpa, angústia, remorsos, interrogações sem resposta e parados no tempo e na vida, que já nem vida será.
Seres cujos olhos demonstram as lágrimas que se amontoam nos respectivos corações, nas respectivas almas, e que de bom grado dariam a sua própria vida para terem de volta, a seus braços, ao conforto de um lar que já foi feliz (à sua própria maneira), a criança que foi deles e que, subitamente, desapareceu.
Pensemos, então, na criança.
No que ela sentirá quando, de repente, não mais vê os pais, os irmãos, os tios, os primos, o resto da família, os vizinhos, os coleguinhas e amigos, os seus brinquedos, o seu quartinho e, na maior parte dos casos, acaba por ser maltratada e molestada por quem nunca viu, por um adulto que, na sua cabeça, deveria gostar dela, deveria protegê-la, amá-la, que lhe sorriu, lhe ofereceu falsamente algo de agradável e agora lhe causa aquela dor e, se necessário, no cúmulo da perversão, lhe tira a vida como quem bebe um copo de água e encobre esse vil crime de maneira a não deixar pistas.
Poderá essa criança algum dia, mesmo que em outro mundo, desculpar-nos, adultos normais, por deixarmos manter entre nós estes outros adultos que tanto mal lhe causaram sem motivo?
Para ela, que nunca me lerá e a quem nunca mais será contada uma história para adormecer, antes de se aninhar nos lençóis lavados, numa cama que era sua, e receber os beijos de amor dos que lhe estão mais próximos, ficam as minhas lágrimas.
E estes miosótis, que são a flor da saudade.
Hic Hic Hurra

6 comentários:

Ticha disse...

A mais pura das verdades...O que fazemos nós? o que podemos fazer? continuam a aumentar os casos e as familias destroçadas...É por estas e por outras semelhantes que sou a favor da pena de morte, o que merecem estes gajos?!

Inspector Serôdio, José Serôdio disse...

Grande e ressacado Zé,

Comemorar é, antes de mais, lembrar.
Lembrar é, antes de mais, não esquecer.
Não esquecer é, antes de mais, manter vivo dentro de nós.
E enquanto há vida há esperança.

Todo este raciocínio antinomaico para dizer que é preciso alertar, diria mesmo mais, chocar consciências para este flagelo do tráfico de seres humanos, que atinge particular e insuportável ignomínia e horror quando atinge as crianças.

Sempre defendi - como continuo a defender - que a pena de morte e a pena de prisão prepétua não resolve nada nem é panaceia para os males do mundo, mas que fazer a estes seres - que de humano nada têm - que se dedicam ao rapto, abuso e tráfico de crianças?...

E atenção, que o abuso não tem que ser necessariamente sexual. Pensemos nas crianças raptadas em África, Ásia e América Latina para engrossar as fileiras de um qualquer exército auto-intitulado de libertação; ou naquelas levadas para trabalhos perigosos, duros e desumanos; ou ainda naqueloutras que servem tãosimplesmente para lhes arrancar os órgãos e os comercializar nos países ricos e democráticos.

Não encontro resposta, e talvez porque não descortino motivo sequer intelegível, para tão abjecta e bárbara actividade.

Mas acima de tudo, não percamos o essencial: se não houver consumidores, não existirá tráfico.
Vale isto por dizer, olhemos para dentro da nossa casa e tratemos dela. Enquanto andar à solta um pedófilo que seja, nenhuma criança estará segura.

Por isso, Zé, termino como comecei: há que comemorar o dia, não com fogo de artifício, copos (aguenta-te) e festanças, mas através de apelos, imagens, reportagens e artigos.

Mas a bem dizer, julgo que estamos de acordo no essencial.

E exorto aqui todo aquele que, como eu, seja cristão - ou que professe outra religião - reze ao nosso/seu Deus pela pequena Maddie, nela englobando todas as crianças que continuam a desaparecer.

P.S. - Ora que porra,tanto discurso que mais valia ter feito um post!

Marquês disse...

Meu caro Zé,
Como sempre, foste brilhante, mesmo se tratando de um texto sério.
Cumpre-me acrescentar que apenas me custa a que este, à semelhança de muitos outros dias internacionais, tenham de existir.
Por outro lado, tenho de te dizer que, como reverso deste dia, deveria também existir o dia internacional "Em que os pais podem agarrar o pescoço dos filhos e estrafegá-los por os ranhosos dos putos terem passado das marcas". Nesse, eu comemorava!

Bottled (em português, Botelho) disse...

Caros colegas de blog,

Este é um assunto que, infelizmente, reúne grande consenso entre as pessoas chamadas normais.

Ao ilustre inspector cumpre-me apenas acrescentar que, embora compreenda o sentido da palavra comemoração neste contexto, não me parece a ideal para descrever este tipo de situações. Façam apelos, divulguem imagens, escrevam-se artigos, realizem-se reportagens, divulguem pelos meios possíveis tudo o que possam, mas, por favor, não comemorem este dia, mas sim toda e qualquer vitória, ainda que mínima, que seja obtida neste campo, tal como a daquela criança que foi resgatada numa operação STOP e que, não sendo, infelizmente, a Maddie, também ela havia sido raptada e que já se encontra junto a seus pais. Isso sim, a meu ver, implica uma verdadeira comemoração. E se o que interessa é chocar mentalidades, então devo dizer que o objectivo está conseguido logo a partir do momento em que se sabe que mais uma criança se encontra desparecida.

Ao digno Marquês, tomara eu ter o poder de erradicar de vez este flagelo e, em vez dele, haveria um outro dia, esse sim de grande comemoração, que seria o Dia Internacional da Erradicação do Raptor de Crianças, dos Pedófilos e afins.

À vizinha ticha,

Muitas vezes eu próprio me questionei sobre a melhor punição para este tipo de pessoas.
Se a pena de morte, com a qual não concordo em absoluto e por princípio pessoal, me aparece tentadoramente aliciante para estes casos, a verdade é que existe sempre o risco de estarmos a condenar inocentes.
Restam os casos de flagrante delito. Para esses, não sei, de facto, que punição lhes daria. Penso sempre no que me passaria pela cabeça se estivesse em causa um filho meu. E lá volto a reflectir em algo que abomino, por princípio ético e moral: a pena de morte.
A verdade é que eles, para abusarem sexualmente de uma criança e até para lhe tirarem a vida, não necessitam de grandes reflexões morais, éticas ou pessoais.
Quanto ao que poderemos nós fazer: não me parece que, infelizmente, possamos fazer muito. A não ser consciencializar o nosso Estado, as forças activas da sociedade (os poderes alternativos, constituindo a comunicação social um excelente exemplo) e tudo o que sejam associações e grupos representativos a pressionarem os restantes países a criar um corpo de elite específico para lidar com este tipo de crime e, em conjunto, encontrar maneiras de apertar o cerco, sem dó nem piedade, a todos os que participam em acções deste tipo, sejam eles os "consumidores" ou os "fornecedores". Seria, talvez, uma possibilidade a considerar. Certamente que existirão outras. Todos os contributos serão bem vindos.
O que eu acho, sinceramente, é que é chegada a altura de dizermos basta e de exigirmos, também nós, que algo seja feito.
O quê, exactamente, é algo que tenho de deixar à consciência e às possibilidades de cada um.
Acreditarei sempre que, todos juntos, se o quisermos, encontraremos soluções, até porque, para mim, tudo na vida tem uma solução.

Hic Hic Hurra

Rabodesaia disse...

Sem dúvida que é um assunto que mexe com toda a gente.é revoltante quando pensamos que por exemplo no seio da própria família que ocorre aos olhos incrédulos de todos as maiores atrocidades... aqueles a quem as crianças chamam de pai ( e as vezes nem o são...).Segundo estatísticas grande parte das violações são particadas por " padrastos" , por avós e tios...
A família que por definição deveria proteger, por vezes é o próprio inimigo coberto com uma cortina subtil... por vezes encobrem-se, para evitar um escândalo, quando o mais escandaloso é precisamente isso...encobrir quem merece ser punido e quem faz deliberadamente mal a quem não tem como se proteger e se defender.
Além do inimigo poder estar em todas as casas, ainda há o perigo exterior...de pessoas... que nem isso deveriam ser chamadas...que não olham a limites e têm tudo o que mais de desprezível pode ter o ser humano.
Gostaria de ser optimista no sentido que tudo se revolve... mas ás vezes nem a pena de morte apaga a dor que sentirão os pais das crianças abusadas... não sei o que merecem... mas a pena de morte é pouco para ser o pior dos castigos.

Bottled (em português, Botelho) disse...

À vizinha rabodesaia,

Pior do que este tipo de situações provenientes do exterior são, como bem refere, aquelas que se consumam no âmbito da própria família, realidade cada vez mais triste e indigna.

E estou como diz: o escândalo é não ser denunciada com medo do falatório ou de represálias e, dessa forma, haver uma continuidade que a criança nunca compreenderá e que a tornará, por certo, num adulto cheio de traumas e incapaz de se movimentar, com normalidade, numa sociedade que não a protegeu de uma família que era a sua e que, supostamente, lhe deveria dar amor, conforto, carinho e protecção.

Já para não falar nos casos em que aparece, na vítima, a Síndrome de Estocolmo.

Sabe, hei-de sempre questionar-me como é que alguém tem coragem de fazer mal a uma criança e nunca hei-de compreender como é que um pai ou uma mãe o conseguem!

Ainda assim, não atiro a toalha ao chão e, pessimo optimista ou óptimo pessimista (defina-me como queira), acho que temos de ter a coragem de tentar fazer algo, em conjunto, já que esconder a cabeça no chão, como a avestruz, ou entender que nada se poderá fazer é como o código postal: meio caminho andado para que este tipo de aberrações andem por aí à solta de forma impune.

Hic Hic Hurra