domingo, 6 de maio de 2007

Celebremos o dia

Aquele iria ser mais um dia especial, ela sabia-o perfeitamente.
Finalmente iria obter a resposta para a pergunta que mais vezes formulara nos últimos tempos: como é que ele iria ser?
As dores estavam a aumentar de intensidade e ela, entre a presença reconfortante do marido e as constantes incursões do pessoal de enfermagem e do médico que iria realizar o parto, tinha ainda tempo para retrospectivar muito do que mudara em sua vida desde aquele dia em que o seu ciclo menstrual foi interrompido e ela, que sempre havia sido tão regular, decidiu deslocar-se a uma farmácia para, depois do nervosismo inicial, dela sair com um sorriso do tamanho do mundo na cara.
Afinal, estava de esperanças.
Recorda-se perfeitamente do ar incrédulo, tonto, do marido quando lhe contou, nesse mesmo final de tarde, a gravidez. Há coisas que, de facto, não mudam e ela já havia comentado com outras colegas no serviço que haviam sido mães o ar com que os respectivos maridos ficavam quando a notícia lhes era dada, assim a frio. Todas eram unânimes num ponto: ficavam com o ar mais aparvalhado que jamais lhes conseguiram ver durante a existência comum.
O jantar comemorativo, num restaurante, à luz das velas, bem como a deslocação a uma loja, num centro comercial, para comprar a primeira chupeta, serão sempre gratas recordações.
Naquela primeira noite, devido à agitação, o sono tardou a chegar e, quando finalmente Morfeu a tomou em seus braços, levou-a numa viagem ao mundo dos sonhos onde brincou com uma criança sem rosto, mas que sabia estranhamente sorridente e que sabia, igualmente, ser a sua.
Vieram, depois, as ecografias e, com elas, a constatação, por entre lágrimas de felicidade, da vida que fora plantada no seu ventre e que, no mesmo, foi contínua e carinhosamente regada até ao dia de hoje.
Os exames, com a inevitável ansiedade a eles inerente, foram sendo feitos, não sem os sustos que resultaram da suspeita, a determinada altura, do feto ser portador de trissomia 21 o que obrigou à realização de uma amniocentese e proporcionou ao casal as mais dramáticas duas semanas de gravidez, onde a palavra aborto pairou, silenciosamente, no ar e o ambiente era tenso e emotivo.
Quando, por fim, os resultados foram comunicados, despistando a suspeita inicial, o choro voltou, mas de felicidade, apenas compreensível por quem passa pelo drama.
De resto, os normais enjoos, que cedo foram ultrapassados, a falta de imunidade à toxoplasmose, os medicamentos habituais, as consultas regulares no obstetra, o alívio que era ouvir o bater regular e descompassado do pequeno coração, a um ritmo alucinado, as felicitações da família e dos amigos, a mudança física, os quilos a mais, os desejos que quase desesperaram o marido, o enxoval em azul quando tiveram a certeza do sexo da criança, o novo quartinho que tanto prazer deu a montar, as constantes carícias no ventre e um ar de felicidade que dava razão a todos os que defendem que qualquer mulher grávida irradia uma peculiar e inexplicável beleza.
E, muito mais profundo do que tudo isso, o momento em que sentiu o primeiro movimento de seu filho, misto de prazer e de lágrimas, que se foi tornando parte de si à medida que o seu estado ia progredindo.
Até ao dia de hoje, onde, por entre a epidural que tardava em fazer o desejado efeito anestesiante e a dilatação que, a muito custo, ia aumentando, e com ela as dores, as águas rebentaram e o médico e restantes elementos da equipa entenderam que estava na hora.
Ninguém tem a noção da exigência, em termos físicos, de um parto normal.
Por entre dores do outro mundo, alucinantes, apenas vagamente se recorda do que lhe foi pedido, da força que teve de fazer, do momento em que sentiu que as suas entranhas se estavam a dilacerar e talvez o estivessem a ser, pois foi rasgada a frio e ainda hoje não sabe se foi esse o grito final, confundido com a expulsão do feto, ou se outros se lhe seguiram.
Porque, a partir desse momento, entrou no limbo, num espaço onde julgou estar morta, exausta, exaurida do esforço, estava, nitidamente, fora do seu corpo.
Os olhos fechados trouxeram-lhe o conforto da silenciosa escuridão, de onde não queria sair, uma vez que ali havia, finalmente, paz.
E, de repente, enquanto estava a ser cosida, sentiu um calor anormal em si, junto ao peito, e ouviu, primeiro ao longe, depois muito próximo, um ruído que se assemelhava a um… seria possível?... choro.
Abriu os olhos e, pela primeira vez, pela primeira das muitas vezes que se lhe seguiram, compreendeu a noção de paraíso e viu uma criatura dos Céus, um anjo, em carne e osso, poisado em si.
E aquele cheiro, aquele calor, tudo lhe era familiar… como se sempre tivesse feito parte de si, o que não deixava de ser verdade.
Naquele momento único, irrepetível, teve então a certeza da sua missão nesta existência terrena: para além de ter participado no milagre da criação da vida, sabia agora que estava a cumprir um círculo de reciprocidade, pois tinha de amar e ser amada de forma incondicional e absoluta.
O cordão umbilical, físico, que os unira já havia sido cortado, mas aquele outro, invisível, etéreo, espiritual, de tal maneira longo que, mesmo estando em pólos opostos no planeta, sempre os uniria, atado e selado pelo amor, estava ali, apenas vislumbrado por ela e pelo anjo, o seu pequeno anjo.
E, na constante busca pelo amor que constituiria o supremo desígnio da alma de seu filho acabado de vir ao mundo, compreendeu que ela haveria, para todo o sempre, de ser o seu ponto de partida e de chegada, o grande porto de abrigo e de segurança, pois o seu coração assim o revelara.
Tinha começado a aprender o que era ser MÃE.
Hic Hic Hurra

4 comentários:

Ticha disse...

Gostei de ler, um tok muito especial de realidade...

Marquês disse...

GANDA BEBEDEIRA a de sábado!!

Bottled (em português, Botelho) disse...

Caro Senhor Marquês, Senhoria,

Pronto, foi a gota de vinho que fez transbordar a taça.

Como ofendido, eu escolho as armas: garrafas de tinto de Nafarros.

Regras do duelo: ver quem é capaz de emborcar mais de seguida! The last man standing wins (we accept the last man on his knees and even faking that he is down by the ground).

V. Exa. fornece o material vínico, como castigo!

Aaaaahhhhhhhhhh... como adoro este tipo de duelos!!!!!

Hic Hic Hurra

Anónimo disse...

GANDA BEBEDEIRA a de segunda-feira!!

Marquês