segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Hoje, numa qualquer aldeia do Portugal profundo...

D. Rosalinda acordou bem cedo - aquele era o primeiro dia de aulas da sua pequena Jessica e queria que tudo estivesse pronto a tempo e horas.

Ainda a Estrela da Manhã se escondia atrás das serranias, já D. Rosalina preparava o substancial almoço para sua menina, não olvidando a bucha da manhã e a merenda da tarde, tudo com inexcedível desvelo maternal.

Depois, ainda com seu marido, Sr. Amândio, dormindo, dispôs a roupa de sua pequena numa cadeira, mirou-a de ponta a ponta e achou por bem dar mais uma passagem pelo ferro e alguma graxazita nos imaculados sapatinhos pretos de Domingo - que não houvesse nada a apontar à sua petiz!

Já íam sendo horas: - Oh Amândio, tocácordar que tens de ir levar a menina à escola!!

O Pai, resmugando qualquer coisa inperceptível, lá se levantou, dirigindo-se de imediato para a casa de banho

- E vê lá se te pões apresentável, homem! - achou por bem relembrar D. Rosalinda.

Preparou o pequeno almoço da família, ao mesmo tempo que conferia dentro da pasta nova da catraia se não faltaria nada - livros, cadernos, lápis, borracha, afia, estojo...

Já com o leite a fumegar em cima da mesa, foi acordar a pequena Jessica, não sem que antes parasse, à porta, contemplando o justo sono daquele anjo: era o que de mais valioso tinha na vida, não havia noite em que, ao deitar, não agradessesse a Deus e à Virgem a graça de ter concebido tão linda flor, que de dia para dia crescia em beleza, saúde e inteligência; era o seu orgulho, constantemente alimentado pelos generosos encómios de toda a envelhecida população da aldeia, para quem a loira e traquinas Jessica era um sinal de esperança contra uma morte há muito anunciada.

- Vamos, amorzinho, são horas de levantar; então, Jéssi, já te esqueces-te que hoje é o teu primeiro dia de aulas? - disse meigamente , mas em tom decidido, a mãe equanto lhe afagava a espessa e abundante seara de trigo que, desgrenhada, se espalhava pela alvura da almofada.

Estremunhada e a custo - não estava acostumada àquelas alvoradas - a nossa Jessica lá se ergueu do leito, lavou a cara numa bacia que a mãe colocara em cima da cómoda, fez o matinal xixi, vestiu as delicadas roupinhas que D. Rosalinda lhe ía passando com crescente ternura maternal, sentou-se à mesa da cozinha onde já se encontrava seu pai, a quem antes beijou e deu os bons dias, e tomou o seu leite quentinho com pão, enquanto sua mãe lhe escovava a farta e doirada cabeleira.

- Vamos, Amândio, toca andar que não quero que chegais atrasados logo no primeiro dia! - enxotou D. Rosalinda, mais ansiosa em vê-los na rua antes que desaguasse em comovido pranto do que por um possível atraso.

- Mulher, caramba, daqui à escola são 20 minutos de carro e ainda falta mais de meia hora para as aulas começarem...

- Nunca fiando, vá-se lá saber o que pode acontecer... à cautela, à cautela, é melhor irdes com tempo.

Abraçou-se à pequena Jessica, a quem beijou sofregamente, alisou novamente as pregas do vestido, mais uma jeito na fita do cabelo, um dedo molhado para tirar os bigodes de leite e novo desfolhar do rol de conselhos e recomendações, tantas vezes escutado pela pequena nos últimos dias.

Pai e filha lá se fizeram à estrada, não sem que antes D. Graciete, vizinha e madrinha de baptismo de Jessica, a cobrisse com amorosos beijos e lhe ofertasse uma pulseirinha de prata, com uma medalhita da Virgem das Dores, sua devoção.
- Pra te proteger e dar sorte, minha filha, e que Nosso Senhor te acompanhe!

A viagem correu sem precalços. Àquela hora o sol ainda ía baixo e a sucessão de sombras nas curvas da estrada que serpenteava os montes, tantas vezes calcorreados a pé em solitárias brincadeiras de menina, ganhavam uma aura de mistério, que tornava ainda mais empolgante a aventura daquele dia tão especial. O orvalho matinal ainda cobria a densa vegetação que marginava o caminho. A bruma matinal tinha-se dissipado logo com os primeiros raios solares, abrilhantando o dia mais importante da ainda curta existência de Jessica.

O pai, esse, seguia calado. Era o seu jeito. Tinha um amor imenso pela sua pequena, daria a vida e o mais que fosse preciso para proteger a pequena, mas guardava para si os sentimentos. Não sabia o que dizer. De vez em quando uma palmadinha na perna da menina, era tudo.

Em chegando à escola, edifício construído há muito a bem da nação, onde fizera a 4.ª classe com muito esforço e no meio de incontáveis tropelias com os seus muitos colegas - naqueles tempos os alunos eram um autêntico enxame -, deparou-se com um letreiro pregado no portão de ferro forjado, encerrado a cadeado:

Na sequência da política governativa de melhoria das condições de ensino, e visto este estabelecimento ter menos de 20 alunos, a escola encontra-se encerrada no presente ano lectivo.
Queiram-se informar nos competentes serviços qual o estabelecimento de ensino onde se encontram colocados os alunos.

Sr. Amândio leu e releu o aviso, não compreendendo porque lhe fechavam a escola - nunca levara a sério os rumores sobre o encerramento da escola e, quando procurou confirmá-los, apenas respostas evasivas, vagas, estilo aguarde que logo se vê.
Jessica, impaciente, perguntava ao pai o que se passava, porque estava a escola fechada, onde estavam os outros meninos, a sua nova professora...
Dirigiram-se ao café da aldeia, onde questionaram o Sr. Casimiro spobre o sucedido.
- Atão ainda não sabe? Tivram praí uns tipos, ontem à noite, parece que eram do Ministério ou lá o que era, com a GNR, botaram o cadeado no portão e aquele papel. O melhor é irdes escola da vila, lá saberão dizer qualquer coisa, pela certa.
Com esperança renovada e desconfiança quanto baste, lá se fizeram os dois à estrada. Eram mais 30 quilómetros, mas enfim, a distância não era nada comparada com o futuro da rapariga que ali se jogava.
Na sede de concelho, a escola ficava bem no centro da vila, de fronte da igreja. Àquela hora o movimento era grande, se bem que junto à escola já não se visse ninguém. Com o precalço, já passava bem uma hora do início das aulas.
À entrada, de bata beje, imponente, qual furriel de sentinela ao aquartelamento, D. Natércia interpela os dois recém chegados: - Bom dia, vindes atrasados! Atão, como se chama a nossa menina.
- Jessica Sofia Andrade da Silva - antecipou-se a pequena, com inefável orgulho - venho para o 1.º ano!
- Jessica Sofia, Jessica Sofia... - ía repetindo D. Natércia enquanto percorria a extensa lista de nóveis alunos - lamento, mas tu não estás aqui. Tendes a certeza de que a escola é esta?
Então, autoritário, o Sr. Amândio tomou a palavra e relatou todo o acontecido nessa manhã.
- Pois é, lamento muito, mas não posso fazer nada. Temos intruções para só admitir os alunos que estão na lista. Se calhar a Jessica está na escola da cidade, ou na dos Foros, não sei.
- Mas alguém tem que saber, a minha filha tem que ter uma escola!
A pequena é que não queria acreditar naquilo que houvia. As lágrimas irromperam de seus amendoados olhos, escorriam caudalosamente pela alvura de sua faces.
- O melhor, se calhar, é o senhor informar-se junto da Direcção Regional, ou ir mesmo pessoalmente à sede do Distrito, aqui é que, compreenda bem, não podemos ter a sua filha.

Não, não compreendia.
Sr. Amândio perdeu a cabeça. Mandou a inconsolável Jessica esperar no carro. Não podia regressar a casa com a pequena; Rosalinda não ía compreender; o povo não iria compreender. Ele mesmo não compreendia. Como podiam eles fazer aquilo à sua menina, ao seu tesouro.

Estes e outros pensamentos angustiantes atropelavam-se na sua cabeça, tolhendo o habitual espírito sereno e comedido de Sr. Amândio.
Resoluto, afastou para o lado com forte empurrão o sargento da portaria e, decidido, encaminhou-se para o interior da escola.

Não sabia o que faria. Apenas uma certeza: tinha que apagar da sua mente aquela imagem, qual repetida facada no coração, da sua Jessica banhada em silenciosas lágrimas, ensopando o lindo vestidinho branco debruado a flores cor de rosa!

1 comentário:

Marquês disse...

Gostei muito, mas considero estar muito ao estilo do Magnus Mills: cadê o final?