O Buraco Negro Lusitano
Recordo, em miúdo, me ver fascinado quando ao folhear um livro de astronomia descobri os desconcertantes buracos negros, qualquer coisa a uma escala universal que, segundo algumas teorias e a memória que guardo da altura, explicava, muito resumidamente, que eram fenómenos que lidavam com o espaço e o tempo, um espécie de porta para o desconhecido, de onde nada, nem mesmo a luz, se podia escapar.
Hoje, já adulto, não é tanto o fascínio, mas antes a perplexidade que me motiva ao perceber que, para lá dos recônditos do Universo, na nossa aldeia, se desenvolve uma variação lusitana de buraco negro. Este buraco negro não se esconde nos confins do firmamento, não habita as profundezas silenciosas do vácuo; antes evolui num espaço físico muito concreto, o das nossas instituições públicas e privadas. O buraco negro luso chama-se reclamação e é um poderoso instrumento institucional – e instituído - para descartar responsabilidades e ver extintas no vazio as justas reivindicações do comum cidadão.
Passo a explicar. Mandam os compêndios que a reclamação opere como um instrumento com vista a, detectadas e apontadas as falhas, proceder a uma reflexão interna, a um ajuste nas operações, nos procedimentos, em suma, uma ferramenta para melhoria e para melhor no serviço ao cidadão. Assumir o erro e debelá-lo é, consequentemente, nesta situação, um acto de inteligência, de rectificação e de progresso. Ora, tudo isto significa trabalho e, por extensão, esforço e melhoria das competências. Acontece que, na nossa indolente aldeia a remota alusão a trabalho assusta e desmotiva. O que se fez então: criou-se o grande buraco negro de desresponsabilização, o portão de ignorância que suga qualquer acto motivado, esclarecido e interventor do cidadão, no caso concreto uma simples reclamação.
Tudo isto para chegar a uma situação prática, um facto que ocorreu no passado fim-de-semana a um conhecido (vou chamar-lhe Sr. X), uma ocorrência que espelha bem a debilidade social desta aldeia.
O Sr. X estacionou o seu carro numa concorrida artéria citadina, pagando o parquímetro, espécie de franquia que o autoriza a, calma e placidamente, cuidar dos seus haveres, sabendo a viatura estacionada em local apropriado e, supostamente, seguro. O Sr. X é, então, abordado por um exemplar de “cobrador de taxa suplementar de estacionamento”, vulgo “arrumador” - que por antítese é exemplo da desarrumação social deste aldeia.
Acontece que, nesse dia – como em todos os dias em geral – o Sr. X não estava particularmente receptivo a ameaças e, como lhe competia como cidadão, manifestou a mais do que legitima recusa a compactuar com o acto de troca baseado no dolo: “dás-me 50 cêntimos e tens o carro garantido, não me dás e…”.
Face à recusa o Sr. X sujeitou-se, acto contínuo, às ofensas verbais e às ameaças sussurradas. O Sr. X ignorou a afronta e, depois de uma vigília da viatura à distância, constatou as sucessivas investidas – felizmente sem repercussões - do “arrumador”. Revoltado e supondo que uma situação daquela monta seria da responsabilidade da Polícia Municipal dirigiu-se à esquadra no intuito de apresentar a sua reclamação. Primeiro desaire, entre os muitos que se seguiriam: a competência era, afinal de um obscuro departamento camarário. Desta forma, o Sr. X, para lá se dirigiu. Chegando, informaram-no de forma esclarecida e pronta que estava enganado, que não era ali que trataria da questão e a reclamação, lá ficou mais uns minutos, a mordiscar os lábios ao Sr. X.
Novo serviço, porta errada. Afinal era o departamento ao lado. Entremeio o Sr. X aproveitou para uma quantas palavras de desabafo com o segurança e a expectativa de, finalmente, sentir que estava a entregar nas mãos certas a sua indignação. Engano, pois o que viu estendidas foram duas mãos rotas embora, desta feita, com alguma boa vontade de uma funcionária do municipio. A senhora lá indicou o remoto destino e responsável (em férias) para a cansada e exasperada reclamação do Sr. X. O pacato cidadão deixou o serviço com a garantia que no curto prazo de um mês talvez alguém, do remoto departamento, recordando a insignificância que ali o levara, cuidasse da resposta ao seu pedido.
O Sr. X aguarda, agora, com expectativa a reposta que provavelmente, a chegar, virá numa minuta pré-formatada, agradecendo a intervenção, reforçando o empenho na resolução da sua causa e, ponto final, nada mais para além disso.
O mais certo é que a humilde reclamação se veja, como quase todas as outras na nossa Aldeia, sugada no vórtice do buraco negro nacional, um lapso de espaço-tempo onde, infelizmente caiu o nosso país. Resta-nos, quem sabe a esperança de, um dia o bom engenho lusitano encontrar forma de exportar o buraco negro da reclamação portuguesa além fronteiras. Estou certo que muitos países do chamado terceiro mundo irão adoptar a ideia.
2 comentários:
Devo confessar que os demais parágrafos frustraram a ideia temática inicial que eu tinha formulado com a leitura do primeiro parágrafo.
Não andarás a utilizar demasiadas vezes a mesma hiperbole relativamente a diferentes assuntos?
É bom constatar que no vosso intimo ainda bate o belicoso coração dos Lusitanos. Porrada dentro da Aldeia é divertimento, caneco!
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